segunda-feira, 14 de junho de 2010

Inversão

Após ler o livro de Regina Merlin, “Performance nas Artes Visuais” queria fazer uma ação orientada para a fotografia, por já trabalhar como fotografa me identifiquei.

A vontade de fazer o re-enactment da obra de Sophie Calle intitulada ‘Suite Venitienne/Please Follow Me’ começou após assistir o vídeo ‘Contacts’ em que Sophie conta de onde surgiu a idéia que resultou no livro.

De volta a Paris após sete anos fora ela se sentia perdida, sem amigos e sem ter o que fazer Sophie então passa a seguir estranhos para ver o que eles estavam fazendo, com que se ocupavam quando não estavam trabalhando, e para onde iam.
Um dia após alguns minutos seguindo um homem, ela o perde em uma loja de departamento. Na mesma noite porem Sophie encontra o mesmo homem que seguira pela manhã em uma galeria. Tomando esse reencontro como um sinal e ouvindo sobre os planos que o homem tinha de viajar para Veneza, ela decide comprar um bilhete de trem e segui-lo, ao contrario de sua idéia inicial em que Sophie seguia estranhos por algum tempo até perde-los, ela se torna obcecada por esse homem, seguindo seus passos, registrando todos os seus movimento, tirando fotografias dos mesmos prédios dos mesmos ângulos que ele.
Mas assim como essa obsessão começou, ela acaba. Sophie então quer saber como é ser seguida, como é estar do outro lado. Com a ajuda de sua mãe ela contrata um detetive particular para segui lá , ao mesmo tempo em que é seguida, tendo todos os seus passos registrados Sophie escreve sobre seu dia com detalhes em seu diário, e no final compara suas anotações com as do detetive.






Eu decidi fazer o re-enactment da idéia inicial de Sophie. Seguir estranhos escolhidos aleatoriamente nas ruas do Rio de Janeiro para ver aonde eles me levariam, para viver um pouco de suas vidas. Assim que defini o que fazer, comecei a traçar um plano e meus limites, para ter uma base de trabalho. Determinei que :

Escolheria pessoas aleatórias baseando-me simplesmente no ímpeto de seguir.

Meus limites seriam, a pessoa entrar em qualquer meio de transporte, ônibus, trem, metro, taxis, carros, para mim essa pessoa seria considerada ’perdida’.

Não entraria em nenhum prédio, meu campo de observação se limitaria as ruas.

Influenciada pelo vídeo documentário “Contacts” decidi fazer todas as fotos em preto e branco e em filme, para que meu resultado final também fosse um contato.

Tracei um plano básico de onde partiria em cada saída :

Começaria a série de perseguições em um lugar calmo em que a presença de uma maquina fotográfica não causaria estranhamento.

O Primeiro e mais óbvio local, foi o bairro da Urca, no primeiro dia segui 2 pessoas e perdi 1 hora.
Percebi que sendo discreta e fazendo “cara de paisagem” no caso de alguém ficar encarando era a abordagem perfeita.

Passei a criar uma técnica de perseguição. Seguir de longe, do outro lado da rua. Achar um alvo, andar na frente do meu alvo, perto o suficiente para que meu alvo me visse “fotografar a paisagem” então deixava que o alvo passasse e o fotografava.

Ninguém desconfiava abertamente de mim, se meu alvo demonstrasse qualquer sinal de desconforto eu de algum jeito fazia com que ele relaxasse e sua desconfiança cessasse.

Comecei a criar tácticas de evasão, se meu alvo olhasse para trás mais de uma vez, se fosse possível eu estimava sua rota e tomava outro caminho, muitas vezes acelerando o passo para que chegasse antes e meu alvo pudesse ver que eu obviamente não o estava seguindo, nossa presença no mesmo lugar era somente uma coincidência. Algumas vezes essa táctica funcionava, outras vezes eu simplesmente perdia meu alvo devido a algum erro de calculo.


No começo era tudo muito interessante, seguir desconhecidos, criar técnicas de perseguição, era tudo novo e emocionante, todas as possíveis desculpas que me pegava inventado no caso de ser abordada e questionada, tudo aquilo fazia com que a experiência fosse até prazerosa.

Isso durou duas saídas.

Depois de passada a excitação do novo comecei a pensar como era fácil seguir, e como era fácil não perceber que se estava sendo seguido.
Comecei a ficar um pouco paranóica, especialmente após um dia em que passei aproximadamente uma hora seguindo um alvo até ele entrar em um prédio, e no final da tarde o mesmo homem estava sentado em um banco no caminho que tomo para ir para casa. Fazia sentido o homem estar sentado ali já que provavelmente morava por perto, mais na hora meu coração acelerou e eu suei frio pensando que aquele homem que eu seguira estava agora atrás de mim.

Depois deste momento as coisas começaram a piorar.


Eu não tinha a mesma motivação que Sophie Calle tinha quando surgiu a idéia de seguir estranhos, então aos poucos fui ficando desesperada, os comentários que eu escrevia sobre as pessoas que seguia passaram a ser maldosos, denegrindo sua imagem, era tudo o que eu conseguia pensar pois eu estava com raiva dessas pessoas. Porque, a partir do momento que eu decidia seguir uma pessoa, essa pessoa se tornava dona do meu tempo, da minha paciência, da minha vida e minhas escolhas. Eu estava a mercê delas até o momento em que elas cruzavam alguma das premissas que previamente estabeleci.

Eu simplesmente forçava a mim mesma a continuar seguindo. Mas eu não queria mais aquilo. Ao contrario de Sophie, que tomava para si as experiências de seus alvos, eu era subjugada por elas. Eu que tinha tantas coisas pra fazer, minha vida para viver, era forçada a andar por horas, até minhas pernas doerem e ter que admitir que tinha que parar. As horas em que andava sem saber meu destino final, eu sentia que minha vida não era mais minha, eu não tinha escolha, não tinha controle.


Na minha ultima saída semana passada andei por seis horas seguindo pessoas no centro do Rio, o limite que havia imposto a mim mesma - terminar um filme de 36 poses - havia finalmente acabado, o alivio foi incrível, senti minha vida voltando a ser minha.

Isto é, até a manhã seguinte quando recebi uma ligação do laboratório avisando que meu filme havia se perdido completamente.
Só conseguia pensar em todas as horas perdidas.

A experiência vai ficar comigo para sempre, mais eu não tinha mais registro, inaceitável, eu pensei.

E após controlar minha risada desesperada peguei minha maquina digital e voltei as ruas.

A sensação era diferente. O imediatismo da fotografia digital aliviava minha frustração com as perseguições.

Essas fotografias não tem o mesmo peso negativo que toda minha ansiedade passava para a maquina analógica e para as fotos perdidas. Elas são mais leves, pode-se dizer.

Essas são as fotos que coloco aqui.

Não quero escrever nada sobre elas porque em sua maioria não tenho nada de bom para dizer sobre as pessoas que segui, elas tomavam meu tempo e eu me sentia vulnerável então não quero extravasar minhas frustrações em comentários. A única culpada sou eu. Já que comecei isso, essas pessoas são completamente inocentes, estavam somente vivendo suas vidas no momento em que eu aleatoriamente decido fazer parte delas.

Varias coisas não esquecerei, uma delas foi o dia em que ao fotografar um alvo ele se vira surpreso com o barulho da maquina e se aproxima de mim, pedindo desculpas por ter entrado na frente da minha foto, eu tive vontade de falar que ele era minha foto, mais fiquei tão desconcertada que perdi completamente meu centro e não expressei reação alguma alem de um sorriso sem graça que ele tomou como um gesto de aceitação a suas desculpas ele se foi e eu não consegui mais segui-lo.

Termino meu relato com a ultima foto e minha favorita, um dos poucos alvos que gostei de seguir, não me importei de dar todo o meu tempo e lembro com um sorriso no rosto das duas horas em que a segui com os olhos e com minha câmera.

Um comentário:

  1. Excelente trabalho de re-enactment e de fotografia... Interessante como as fotos, embora sem legendas, "dizem" tanto sobre este processo. A motivaçao inicial de Sophie Calle era de saber o que movia as pessoas. O que fazia elas terem urgências, emergências, objetivos, já que ela tinha perdido os objetivos dela pelo deslocamento temporal e espacial da viagem. Exatamente o contrário da sua experiência, já que você tinha e tem isso tudo. Foi mais a experiência imposta do "flaneur" para você, um deslocamento do seu eixo espacial e temporal... Maravilhosas, as fotografias, que, mais do que um registro, se constituem como uma nova obra, um desdobramento.

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