segunda-feira, 14 de junho de 2010

Cut Piece - Re-enactment por Tatiane Santoro

 

Quando eu introduzi a arte da performance estava consciente de que queria inspirar as pessoas e impeli-las a acordarem.”
Yoko Ono em “Os EUA X John Lennon”

Yoko Ono realiza pela primeira vez “Cut Piece” em 1964, no Japão. Repete a performance no ano seguinte, no Carnegie Hall, em Nova York e em 2003 pela última vez, em Paris.
A performance consistia na artista sentada sozinha no palco enquanto o público cortava um pedaço de sua roupa até que não restasse mais nada para cortar ou até que ela decidisse pelo término da performance. Yoko permaneceu todo o tempo sem se movimentar e em silêncio, com o olhar fixo e distante, enquanto os convidados a cortavam. A atividade do público era o que resultava no êxito da comunicação, cito: “É então inquestionável que o público, na condição de parceiro participante no teatro e não mais de mera testemunha do exterior, decide sobre o êxito na comunicação.” (H. T. Lehmann, “Teatro e performance”), ou seja, na performance feita por Yoko como o público era convidado a cortar um pedaço da sua roupa ela só teve êxito pois houve resposta à indicação.
Nas duas primeiras apresentações a performer tem como principal inquietação a Guerra do Vietnã. Aqueles cortes eram como se toda a violência do mundo recaísse sobre ela e ela aceitava essa violência na sua maior passividade. Já em 2003 seu fio condutor foi o ataque de 11 de Setembro, onde as pessoas estavam convivendo com uma intimidação constante. Segundo Yoko: “As pessoas ficaram sem voz.”. Por essa passividade da sociedade diante dos acontecimentos, ela relata que fez o Cut Piece pela paz e pelo amor pedindo para as pessoas que mandassem o pedaço que elas cortassem da sua roupa à pessoa amada. Apesar das motivações encontradas por Yoko para a realização do “Cut Piece” serem, aparentemente, antagônicas (raiva e amor) há, nitidamente, uma presença sócio-política nos dois casos, onde a situação da sociedade, naquele momento, foi a sua principal inquietação e fez com que ela se movesse para a feitura da performance, levando as pessoas a se inspirarem para alguma movimentação contra (ou a favor) da situação sócio-política daquele momento.
Com o primeiro texto proposto para leitura “Performance nas artes visuais” de Regina Melim, fiquei diante de uma primeira visão do que pode ser performance e de várias possibilidades de re-enactment. Nesse primeiro texto percebo que, na maioria das performances citadas, o público é elemento determinador do que irá acontecer, da condução da ação. O artista no caso se deixa afetar por essa participação e, junto daquele público ativo, transforma o que era o esboço de uma ação. Com esse primeiro entendimento decidi por fazer o “Cut Piece” de Yoko Ono que, segundo esse mesmo texto, diz ser: “Uma tentativa, conforme ressaltava a artista, de desconstrução da suposta neutralidade do espectador diante de uma obra.”. Com essas referências refiz pela primeira vez a performance “Cut Piece” no dia 03 de Maio de 2010 na UniRio,. Estavam comigo os performers: Rany, Claudio e Vanessa. Ficamos sentados, um de frente para o outro, na passagem para o prédio de teatro, em frente à Sala Branca; por uma falta de atenção traduzimos “Cut Piece” para “Corte um Pedaço” como se estivéssemos ordenando o público a agir. Diante disso, naquele momento, minha passividade diante da ação dos espectadores foi o meu fio condutor, ou seja, iria ficar na ação até que eu saísse da minha passividade, contrariando a afirmação desse texto e levando em consideração um outro texto lido mais adiante no curso: “Aqui, o perigo e a dor são o resultado de uma passividade intencional; tudo é imprevisível porque tudo depende do comportamento dos freqüentadores.” (H. T. Lehmann “Teatro e performance”)
No espaço da nossa própria faculdade fiquei, de certa forma, mais segura, mas aquele cartaz tão incisivo no seu objetivo despertou nos espectadores/amigos a curiosidade de saber qual seria o nosso limite. No início houve um certo receio de começar a cortar os performers, mas depois dos primeiros cortes a situação aconteceu conforme o cartaz indicava; a violência ficou em evidência durante toda a ação. Como um cartaz com uma ordem tão agressiva pode ser aceita de forma tão natural? O limite do espectador também foi testado, pois a ordem do cartaz, apesar de direta, não era específica e, segundo o mesmo, o público poderia cortar o que quisesse. Diante de tanta liberdade e possibilidades, o terror psicológico foi recorrente durante toda a performance, tomando o lugar da criatividade. O final, para mim, foi quando o meu top caiu e eu fiquei semi-nua. Numa ação impulsiva, cobri os meus seios e achei que saí da minha passividade, o que, naquele momento, era o meu objetivo/questão.
Com essas referências e conceitos obtidos, até aquele momento, essa primeira experiência se esgotara nela mesma, ou melhor, se esgotara em mim, no meu limite. Não há um elemento transformador. Depois da leitura do texto “Estética Relacional” do Nicolas Bourriaud, chego a uma conclusão citando o texto: “Nada mais absurdo do que afirmar que a arte contemporânea não apresenta nenhum projeto cultural ou político, e que seus aspectos subversivos não se enraízem em nenhum solo teórico.”
“A atividade artística constitui não uma essência imutável, mas um jogo cujas formas, modalidades e funções evoluem conforme as épocas e os contextos sociais.”
“Estética Relacional” Nicolas Bourriaud
Outros textos foram lidos e discutidos durante o curso e, com outras tantas informações obtidas no decorrer do semestre e por uma pesquisa que abrangeu também a vida artística da Yoko Ono, abri o meu olhar sobre o “Cut Piece”. Então, na segunda vez que refiz a performance, fui imbuída de outras questões. Refleti sobre qual seria a real importância dessa reconstituição em 2010.
A passividade foi muito mencionada desde a primeira vez que a performance foi feita, às vezes sendo vista de maneira rasa, indo contra toda a história de um posicionamento firme contra as forças políticas tão presentes na vida de Yoko. Então, coloco em questão a passividade hoje; passividade vivida por nossa sociedade que é agredida de muitas formas pelo poder público e não faz nada. Foi com esse pensamento que decidi “representar” essa passividade da sociedade na outra experiência da reconstituição.
No dia 8 de junho de 2010 fui com Vanessa e Flaviane (outras colegas de turma) para o IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais na UFRJ) e lá fiquei passiva. Ficamos sentadas uma de frente para a outra, com três tesouras na nossa frente, no pátio da faculdade e com uma folha que, desta vez, tinha a tradução correta: “Pedaço Cortado”. Diante da violência tão presente na primeira experiência, também fui pensando em como a violência pode ser aceita de maneira tão natural, como é fácil nos movermos para uma ação de agressão. Muitas pessoas passavam, olhavam ou simplesmente ignoravam a nossa presença. Após muito tempo de estranhamento houve uma primeira intervenção: um rapaz que estava sentado no pátio há algum tempo se aproximou, ficou olhando e, por fim, cortou a folha da Vanessa com a tradução. Esse foi o primeiro momento de interação, mas também não passou muito disso; o que ficou muito presente em toda a ação era o questionamento que aquilo gerava, muitas pessoas discutiam sobre o que era aquilo, mas discutiam apenas entre elas. Até que em um dado momento um rapaz que estava nos observando há algum tempo se aproximou e perguntou o que estávamos fazendo. Quando percebeu que não iria obter resposta, pegou uma cadeira, sentou na nossa frente e começou a falar sobre as inúmeras possibilidades do que aquilo poderia ser, o que me faz citar: “...durante uma exposição, mesmo que de forma inertes, estabelece-se a possibilidade de uma discussão imediata nos dois sentidos do termo: percebo, comento, desloco-me num espaço-tempo.” (Nicolas Bourriaud “Estética Relacional”). Ou seja, a performance permite o pensamento sobre a ação no momento da mesma, o que ficou bem evidente durante toda essa ação, não só pela aproximação desse rapaz, mas também por todo o burburinho que foi causado na ocasião. Percebi que naquele lugar as pessoas estão condicionadas a pensar e não a agir.
O percurso desse re-enactment foi bem curioso, pois começou com um questionamento pessoal, que tirava todo o lado sócio-político da performance original e ficava com a sua forma; depois houve um certo aprofundamento, levando em consideração o contexto social, a intenção, a forma (novamente) sabendo, claro, que estamos em uma outra época e em um outro lugar. Por fim, minha impressão se abriu para as infinitas possibilidades de interpretação desta performance. A interpretação é muito pessoal e a reconstituição de uma performance permite a mobilidade dos significados da mesma, deixando que a interpretação seja única para cada pessoa que a assista

Um comentário:

  1. Reflexao muito detalhada e aprofundada sobre as possibilidades de construçao de sentido... Excelente trabalho, que mobiliza os textos teóricos e tece teoria e prática, presente e passado.

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